Páginas

sábado, 23 de maio de 2015

Preconceito no BDSM? Ironia, hipocrisia, falta de noção ou só humanidade?

Caso encontre algum termo desconhecido, recomendo a utilização do meu Glossário BDSM, que está dividido em 2 partes (vide links a seguir): Parte 1 e Parte 2.

Se não todos, a maioria de nós entra no BDSM e com a ideia de que finalmente encontramos um "lugar", um grupo onde não sofreremos preconceito com relação às nossas taras e desejos mais sujos e secretos.

Passa o tempo e percebemos que não é bem assim. Quanto mais conversamos com pessoas (virtual e pessoalmente), vamos descobrindo que, ainda aqui, no nosso cantinho seguro, o preconceito corre solto, com uma ferocidade ainda maior que no mundo baunilha, creio.

Existem alguns tipos de preconceito que acontecem e que são bem perceptíveis. O com os iniciantes, o com algumas práticas e os preconceitos "comuns" do mundo baunilha: racial, sexual e de gênero.

Vamos a uma breve elocubração sobre cada um.


Preconceitos do mundo baunilha:


Os debates sobre estes preconceitos já vêm sendo debatidos amplamente por pessoas com muito mais conhecimento que eu nestes pontos.

Preconceito Racial

Sério? É muito triste alguém achar, ainda hoje em dia, que cor de pele diz alguma coisa sobre alguém. 

Preconceito Sexual

Galere... vamos lá... BDSM é prazer, certo? Se o prazer de fulano é alguém do mesmo sexo, se isso não atrapalha a sua vida, por que, diabos, você tem que se meter no relacionamento alheio? Deixa a galera ser feliz, po...

Preconceito de Gênero

Sexismo hoje em dia? Num meio onde a troca de poder ocorre livremente, onde mulheres cedem poder a homens e homens a mulheres, onde homens cedem poder a homens e mulheres a mulheres, onde casais cedem o poder a um único indivíduo e um único indivíduo cede o poder a casais?
Tem muita coisa errada na sua cabeça se vc acha que alguém é inferior a alguém.


Preconceito com os iniciantes:


Todo iniciante - que se apresente ou identifique como tal, ou não - sofre um preconceito tremendo ao chegar no BDSM. Nunca consegui entender isso direito, já que todos os "não-iniciantes" dizem por aí que quanto mais gente melhor, é bom quberar a barreira do preconceito sofrido por todos pelo mundo baunilha e etc. Raramente se escuta algo diferente disso e, mais raramente ainda, afirmações contrárias vêm bem embasadas por algum argumento decente.

Vamos aos acontecimentos: 


Mulheres acabam sofrendo um pouco menos de preconceito no meio (feministas, segurem suas pedras nas bolsas, por favor). Não estou dizendo que não há preconceito com mulheres, mas que, no caso dos iniciantes, este fica menor (ou pelo menos mais velado) que o sofrido pelos homens.

Pois bem, bottoms iniciantes do sexo feminino ficam taxadas de "crias de 50 tons", mesmo que nunca tenham lido meia frase do livro e jamais tenham visto o filme. Automaticamente, se é sub e iniciante, é burra, sonhadora e se for tímida e educada, pior ainda. No fim das contas, acaba virando carne fresca pros predadores.

Tops iniciantes do sexo feminino são o "tipo" que menos sofre, salvo por uns "tops machos" que consideram mulheres em geral como inferiores. Mas ainda assim, muitas acabam sendo só consideradas vagabundas que chegaram pra se sentirem melhores que os outros, ou pra "se vingar" dos homens, os seres cruéis que as maltratam no mundo bau.

Bottoms iniciantes do sexo masculino acabam sempre caindo no quesito "cara babaca que só quer sexo fácil", e vira um "verme" na mão das Rainhas e Dommes mal intencionadas.

Aliado a um intenso preconceito por parte dos outros mais velhos por ser "competição nova", pelas Tops mulheres por ser "mais um Christian Grey" (mesmo que o cara tenha surgido antes do boom 50 tons, nem saiba do que se trata, seja feio de dar só, não tenha dinheiro pra comprar uma bala juquinha e seja mais burro que um pedaço de madeira mofada) e, finalmente, pelas bottoms mulheres por ser "mais um cara babaca que só quer sexo fácil e não sabe nem pegar num chicote", Tops do sexo masculino são as criaturas mais escurraçadas dentre os iniciantes (não, não estou puxando sardinha pro meu lado... falo do que vi e vivi - já li algo semelhante escrito por alguma mulher, se não me engano, Sisceris. Caso esteja errado, ou se alguém souber onde está essa fonte, por favor, me mandem o link pra eu ver se posso postar aqui.). Tops iniciantes do sexo masculino sofrem o estapafúrdio preconceito ATÉ pelos outros iniciantes.


Preconceito com as práticas:


Começo esta parte com um trecho de um livro considerado o mais repugnante de um dos autores mais controversos da história da literatura: "120 dias de Sodoma, ou A Escola da Libertinagem" de Donatien Alphonse François de Sade, o famoso Marquês de Sade.

"Agora, amigo leitor, prepara teu coração e teu espírito para o relato mais impuro já feito desde que o mundo existe, pois não há livro semelhante nem entre os antigos nem entre os modernos. Imagina que todo gozo honesto ou prescrito por esse animal de que não paras de falar sem conhecê-lo e a quem chamas de natureza, todos esses gozos, eu dizia, serão expressamente excluídos dessa coletânea e quando, porventura, os encontrardes, estarão sempre acompanhados de algum crime ou coloridos de alguma infâmia.

Sem dúvida, muitos dos desregramentos que encontrarás aqui retratados desagradar-te-ão; alguns entretanto aquecer-te-ão a ponto de te custarem porra, e isso nos basta. Se não tivéssemos dito e analisado tudo, como poderíamos adivinhar aqueles que te convêm? Cabe a ti tomar a uma parte e deixar o resto; um outro fará o mesmo; e, aos poucos, tudo encontrará seu devido lugar. Esta é a história de uma magnífica refeição em que seiscentos pratos diversos serão oferecidos a teu apetite;. Apreciarás todos? Não, sem dúvida! Mas esse número prodigioso ampliará os limites de tua escolha, e, encantado por esse aumento de faculdades, não te atreves a repreender o anfitrião que te presenteia. Faze o mesmo aqui: escolhe e deixa o resto, sem vituperar contra esse resto sob pretexto que não tem o talento de te agradar. Lembra-te que agradará a outros, e sejas filósofo.

Acerca da diversidade, estejas assegurado de que ela é precisa; estuda bem as paixões que te parecem assemelhar-se a outra sem a menor diferença, e verás que essa diferença existe e, por mais leve que seja, ela apenas tem esse refinamento, essa delicadeza que distinguem e caracterizam o gênero de libertinagem aqui tratado.
De resto, essas seiscentas paixões são ilustradas pelos relatos das narradoras; é mais uma coisa que o leitor deve estar informado. Teria sido monótono demais detalhá-las de outro modo e uma por uma, sem as integrar no corpo de uma narrativa."



E agora você se pergunta: "O que diabos esse cara quer dizer com isso?"




Quer dizer que as pessoas não sabem aceitar aquilo que não as agrada. Sade era um libertino, coisas que nós, BDSMers não somos, visto que não abusamos da liberdade, não transgredimos (ou pelo menos não devemos) transgredir o limite alheio (sem consentimento). No entanto, com atenção e cuidado, podemos trazer este trecho para o nosso estilo de vida, nossos gostos e, se pararmos pra observar, podemos entender como deveria ser o nosso comportamento em relação a outros praticantes do BDSM.


No começo do texto, poderíamos alterar algumas coisas e tornar isto não uma apresentação de livro que fala de crimes e crueldades, mas um alerta para quem adentrasse o BDSM. Vamos fazer umas alterações:

Agora, amigo praticante, prepara teu coração e teu espírito para vislumbrar alguns dos prazeres mais intensos do mundo, pois não há meio semelhante nem entre os caretas nem entre os libertários. Imagina que todo orgasmo simples já sentido ou provocado por esta força a que chamamos de natureza, todos estes orgasmos serão ultrapassados aqui e, quando os vir, estarão sempre associados a alguma prática.

Em seguida, apenas uma palavra precisa mudar. Troquemos "desregramentos" por "práticas" no começo do parágrafo e voilàhabemus BDSM. 
Sem dúvida, muitas das práticas que encontrarás aqui retratadas desagradar-te-ão; algumas entretanto aquecer-te-ão a ponto de te custarem porra, e isso nos basta. Se não tivéssemos dito e analisado tudo, como poderíamos adivinhar aqueles que te convêm? Cabe a ti tomar a uma parte e deixar o resto; um outro fará o mesmo; e, aos poucos, tudo encontrará seu devido lugar. Esta é a história de uma magnífica refeição em que seiscentos pratos diversos serão oferecidos a teu apetite;. Apreciarás todos? Não, sem dúvida! Mas esse número prodigioso ampliará os limites de tua escolha, e, encantado por esse aumento de faculdades, não te atreves a repreender o anfitrião que te presenteia. Faze o mesmo aqui: escolhe e deixa o resto, sem vituperar contra esse resto sob pretexto que não tem o talento de te agradar. Lembra-te que agradará a outros, e sejas filósofo.

Continuando, sobre a diversidade, duas pequeninas alterações:
Acerca da diversidade, estejas assegurado de que ela é precisa; estuda bem as práticas que te parecem assemelhar-se a outra sem a menor diferença, e verás que essa diferença existe e, por mais leve que seja, ela apenas tem esse refinamento, essa delicadeza que distinguem e caracterizam o gênero de prazer aqui tratado. 

Nesta última parte, voltamos a trocar "leitor" por "praticante.
De resto, essas seiscentas paixões são ilustradas pelos relatos das narradoras; é mais uma coisa que o praticante deve estar informado. Teria sido monótono demais detalhá-las de outro modo e uma por uma, sem as integrar no corpo de uma narrativa.

Juntando isso tudo, podemos concluir que o BDSM é um conjunto de práticas específicas, que aceita a "intromissão" de outras práticas vindas de outros grupos, mas que estas não devem ser confundidas como a mesma coisa.
São MUITOS os fetiches e devemos simplesmente escolher e aceitar os nossos, bem como aceitar os fetiches alheios como o que são: fetiches como os nossos. Se não são do nosso agrado, tal qual um produto no supermercado, devemos deixá-lo na prateleira, para que outra pessoa, a quem aquilo agrade, possa pegá-lo. 
As diferenças entre os fetiches existem, claro. Alguns são mais populares que outros, outros chocam menos, ou desagradam menos, mas ainda assim, todos são fetiches.
No fim das contas, sempre é válido lembrar que estamos tratando de pessoas aqui. Sentimentos, prazeres, instintos. Tratar de um fetiche como uma coisa inanimada ou isolada é desmerecer o prazer que pode causar a uma pessoa. É desrespeitar não somente aquela prática, mas também a quem a pratica e, sim, é um desrespeito com as próprias. A partir do momento em que um fetiche é jogado na lama por um BDSMer ou fetichista, TODOS são jogados juntos. 


"Ah, Rasputin, mas eu só gosto de um pouco de bondage e um spanking leve. Não sou obrigado a ver um cara vomitando na boca do outro!"


Calma, ninguém disse isso. Ninguém é obrigado a NADA, e por isso existe o bom senso de não praticarmos as coisas onde não temos como garantir a segurança/saúde/bem estar alheio. No entanto, não é por não gostar de uma coisa que podemos julgar quem as pratica ou até mesmo a prática em si.
Podemos e devemos SEMPRE questionar a segurança envolvida, mas NUNCA o prazer envolvido nela. 
Podemos não compreender os motivos que levam uma pessoa a se excitar com uma coisa específica, mas devemos compreender que aquele é o prazer de alguém, e poderia ser o seu. Usando as palavras de uma pessoa que eu adoro: "Por quê o meu fetiche é melhor que o de outra pessoa? Não é tudo fetiche?".

-----------------------------

Estamos todos aqui pelo prazer, pela liberdade, pela felicidade de podermos viver nossos desejos e é do ser humano ser crítico e ter ojeriza ao diferente. No entanto, temos que nos esforçar cada dia mais pra nos policiarmos e reduzirmos nossos preconceitos e aumentarmos nossas aceitações. 

Não precisamos passar a gostar de tudo, nem sequer aceitar que tudo aconteça onde estamos, menos ainda fazer alguma coisa num lugar onde sabemos que não seria adequado por ser algo muito exclusivista. Mas se vamos a um local onde aquilo pode acontecer, cabe a nós simplesmente ficarmos de boca fechada e aceitar caso aconteça. Ou sermos educados e nos retirarmos durante o acontecimento.

Enquanto grupo, já sofremos preconceito pelos baunilhas. Enquanto grupo, temos que nos unir pra sobrevivermos. 
O sexo "pesado" já foi banido na produção cinematográfica no Reino Unido e lá rola união.
E aí, vamos nos desunir pra sermos banidos aqui também?

2 comentários:

  1. Eu devorei o blog praticamente! Estava tentando voltar com minhas leituras sobre o tema, abandonadas já que eu era vista como vagabunda, "de conversas" exóticas e "a iniciante bobinha" na época, daí esbarrei por aqui. Imagine o meu alívio ao ver uma postagem recente! Gostei da forma que escreve. Particularmente esta e outra postagem foram o que eu estava procurando, algo que acalmasse meus pensamentos com algum toque informal às teorias. A mente humana é engraçada, não? De qualquer forma, obrigada pelo bom trabalho, Rasputin. Por favor continue-o.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado, Amanda! Fiquei umas semanas sumido, mas estou voltando a postar com mais regularidade.

      Excluir